O caso das pílulas de fosfoetanolamina sintética é um dos
exemplos mais visíveis de como o Brasil é um país atrasado e ignorante.
Um pesquisador que trabalha num universidade pública divulga
que uma droga sintetizada por ele cura câncer. E, segundo relatos, andou
curando câncer de algumas pessoas.
Com a notícia sendo transmitida boca-a-boca e a postagem em redes
sociais o fato ganha notoriedade e o laboratório público onde o pesquisador trabalha
começa a fabricar e a distribuir a droga.
A Justiça, claro, foi acionada e proibiu a distribuição.
Depois, a Justiça foi acionada de novo e obrigou o laboratório a fazer a
distribuição a quem conseguiu uma liminar.
Enquanto isso, muitas pessoas nas redes sociais travam uma guerra.
Quem tinha parente com câncer geralmente esbravejava a favor das pílulas e quem
tinha um pouco de bom senso percebia que a coisa não podia ser assim. E aquela
turma que vê teorias de conspiração em tudo lançou o velho complô da “máfia dos
remédios”, do “lobby farmacêutico” ou algo que o valha sem a menor comprovação
de qualquer fato.
Aí veio o médico Dráuzio Varella e disse, no Fantástico, que
aquilo era um perigo. E elencou as razões: o remédio não tinha jamais passado
pelos testes normais que um remédio é obrigado a passar antes de ter comprovada
usa eficácia; nenhum órgão oficial tinha referendado o remédio exatamente por
não ter sido testado como mandam as normas; não existe um único remédio para câncer, pois são vários os tipos
dessa doença e muitos exigem um tratamento diferenciado.
Foi o bastante para que ele se tornasse o vilão preferido nas
redes sociais. Um médico, cuja atuação profissional só pode receber elogios, de
repente está “a serviço da indústria farmacêutica”, “contra a população pobre”
e outros absurdos que postados diariamente nas redes sociais e, muitas vezes,
na própria imprensa irresponsável que ulula por aí.
Agora, o Conselho Federal de Farmácia autuou e vai multar o
laboratório público (é do Instituto de Química de São Carlos que pertence à USP)
que está produzindo o remédio para enviar a pacientes que receberam da Justiça
o “direito” de ter a tal pílula.
Pelo menos um deputado entrou na briga, querendo fazer lei
que obrigue o fornecimento e médicos sérios consideram que estamos vivendo uma “indústria
do desespero”.
O cenário todo que se formou em torno desse caso é de
arrepiar. Caos é pouco. Senão vejamos:
1 – Um químico descobre que uma droga pode amenizar um ou
outro tipo de câncer, mas sem comprovação de que ela cura a doença ou serve
para todos os tipos de câncer
2 – A notícia se
espalha e muita gente – com os mais variados tipos de câncer – vai atrás da
droga que, diga-se, não pode ser vendida
3 – Acionada por organismos responsáveis pela liberação de
remédios no Brasil., a Justiça proíbe a venda
4 – Acionada por pessoas que se acham no direito de ter a
droga, a Justiça obriga o laboratório público – cuja função não é produzir
remédios em escala – a produzir e fornecer a droga a quem conseguir autorização
da Justiça. O absurdo de um juiz, sem conhecimento técnico e mesmo sabendo que
a droga não passou pelos testes obrigatórios para ser distribuída, obrigar seu
fornecimento parece não ter importância no cenário caótico que se produziu
5 – E no mais recente episódio do caso, um dos organismos
responsáveis pela fiscalização farmacêutica, resolve autuar o laboratório
público que está produzindo. E agora? O laboratório está ilegal porque produze
distribui uma droga não testada e está legal porque foi obrigado pela Justiça a
produzir e fornecer a droga.
Duvido que tudo isso pudesse acontecer num país minimamente civilizado, onde as
normas e leis são seguidas à risca. A descoberta da droga seria comunicada aos
órgãos competentes, eles fariam os testes todos e, dentro de alguns anos – os testes
são necessariamente demorados - liberariam ou não a produção e comercialização
do remédio.
E eu torço para que, um dia, feitos os testes, a Anvisa ou
quem de direito ateste que a droga serve para curar algum ou vários tipos de
câncer. Seria bom para o mundo e talvez até valesse um prêmio para quem a
descobriu. Mas distribuir um remédio sem que sua eficácia e seus efeitos tenham
sido testados é=, além de um desrespeito com a saúde da população, um crime
previsto em lei.
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