Não desistiremos do
Brasil
Hélio Bicudo e Janaína
Paschoal
Em denúncia
apresentada à Câmara Federal, requeremos o afastamento da presidente da
República, Dilma Rousseff, pela prática de crimes de responsabilidade,
claramente previstos no artigo 85 da Constituição Federal e na lei nº 1.079/50,
atualizada pela lei nº 10.028/00.
A denúncia lastreou-se
em vários fatos. Primeiro, no comportamento leniente da chefe da nação, que
reiteradamente negou o estado calamitoso das contas públicas e o verdadeiro
saque feito à Petrobras, deixando de afastar e de responsabilizar seus
subordinados e, muitas vezes, defendendo-os publicamente. É impossível negar a
relação estreita da presidente com os principais envolvidos na Operação Lava
Jato, muitos, aliás, presos e condenados.
O princípio da
presunção de inocência vale na esfera penal, não na administração pública.
Diante das denúncias, quando lhe perguntavam se tomaria alguma medida, a
presidente costumava responder que não, por respeitar tal princípio. Ocorre
que, diante de graves fatos, a presidente da República tem que afastar os
suspeitos. A lei nº 1.079/50 prevê ser crime de responsabilidade "não
tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados".
Além desse primeiro
ponto, a denúncia lastreou-se na íntima relação entre o ex-presidente Lula, a
Odebrecht e a própria presidente Dilma. Para minimizar o descalabro, tem-se
falado em lobby.
Os fatos levados ao
conhecimento da Câmara, no entanto, não têm relação com lobby. Não é natural
que um ex-presidente represente comercialmente uma empresa que contrata com o
poder público no Brasil e no exterior. O Brasil chegou a tão alto nível de
ilegalidade que, para negar corrupção, se alega, com tranquilidade, tráfico de
influência.
A situação se agrava
quando se constata que diversos contratos foram fraudados e grande parte do
dinheiro voltou aos detentores do poder, como propina ou doações de campanha,
supostamente lícitas.
Essa fraude é
identificada quando os fatos são analisados em conjunto. Apenas tendo acesso a
todos os dados é possível perceber o engodo de que o país foi vítima. Cada
contrato, quando olhado isoladamente, pode até ser considerado lícito, pois os
técnicos, pertencentes a vários órgãos, avaliam as informações que lhes são
disponibilizadas.
Somente sabendo que a
presidente enviou dinheiro a países parceiros sob a chancela de sigilosos, que
o ex-presidente intermediou negociações milionárias com empresas que contratam
com o poder público e que parte do dinheiro voltou aos mesmos atores, torna-se
possível punir os reais responsáveis.
A denúncia em que se
requer o afastamento da presidente da República narra também que ela, durante
todo o ano de 2014, feriu mortalmente a Lei de Responsabilidade Fiscal, ao
fazer com que bancos públicos pagassem seus principais programas de governo,
cometendo as chamadas "pedaladas fiscais". Pior, o Tesouro Nacional
não contabilizou o débito bilionário. Se o governo estivesse de boa-fé, teria
escriturado esses débitos. Escondeu porque estava presente o dolo.
A lei nº 1.079/50, que
disciplina o impeachment, diz que constitui crime de responsabilidade, por
afronta ao Orçamento, entre outros comportamentos presentes no caso de que ora
se trata: "Ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de
operação de crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive
suas entidades da administração indireta, ainda que na forma de novação,
refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente".
Durante seminário do
IBCCrim, em 2001, José Eduardo Cardozo, hoje ministro da Justiça, disse que a
Lei de Responsabilidade Fiscal deveria ser aplaudida, por forçar o
administrador público ao planejamento, sob pena de sanções drásticas, inclusive
o impeachment. Lei que vale para Pedro vale para Paulo. Se Dilma não feriu a
responsabilidade fiscal, que se encerrem os processos em trâmite contra
prefeitos e que se revejam as condenações já proferidas.
Em aditamento, o
professor Miguel Reale Júnior acrescentou o grave fato de, no final de 2014, a
presidente ter publicado decretos não numerados, abrindo crédito suplementar,
segundo consta, sem autorização do Congresso Nacional.
Tais decretos também
implicam crime de responsabilidade, dado que a lei nº 1.079/50 proíbe
"ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites
estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de
crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal".
Por não terem como
contrariar os fatos, os governistas já estão arregimentando juristas para
construírem elaboradas teses a sustentar que não cabe impeachment por crime praticado
em mandato anterior. Tal movimento, em si, implica verdadeira confissão, pois
estão a dizer que crime houve, mas não se pode fazer nada a respeito. Por mais
que se esforcem, os defensores da presidente não conseguem indicar um
dispositivo legislativo que impeça o impeachment por crime praticado no mandato
anterior.
Tem-se propalado que a
Constituição proíbe que a presidente seja responsabilizada por atos alheios a
suas funções. Ora, desde quando função é sinônimo de mandato? Esse argumento é
primário.
É inegável que as
ações e omissões narradas na denúncia são inerentes ao exercício da função de
presidente da República. Seria possível tentar alegar que os denunciantes
citaram o caso da compra da refinaria de Pasadena (EUA), em 2006.
É verdade, mas os denunciantes
não requereram que a presidente fosse afastada por Pasadena. Esse escândalo é
citado para mostrar que a presidente sempre esteve no centro das ocorrências e
adotou o expediente de agir como se nada soubesse, como se nada fosse.
O saudoso jurista
Paulo Brossard escreveu "O Impeachment", obra na qual sustentou que o
cargo de presidente é tão valioso que até mesmo fatos alheios e anteriores à
Presidência podem ensejar o afastamento. Juristas de todas as gerações já
mostraram tecnicamente que cabe, sim, impeachment por crime de responsabilidade
praticado no mandato anterior. Estão entre eles Adilson Dallari, Ives Gandra
Martins, Flavio Bierrenbach, Dircêo Torrecillas Ramos e Gustavo Badaró.
A fortalecer os
argumentos teóricos, Miguel Reale Júnior traz dois precedentes do STF, no
sentido de que a eleição não pode ser vista como um véu de impunidade. Os
crimes de responsabilidade foram perpetrados para garantir a reeleição e
ganharam publicidade depois do acórdão do Tribunal de Contas da União, publicado
em 2015. Ademais, houve pedaladas neste mandato.
Os contratos
fraudulentos, as propinas, os ajustes, os valores sigilosamente mandados para
governos corruptos, a maquiagem na contabilidade e os empréstimos proibidos
foram atos determinantes para criar a ilusão de que o país estava saudável
econômica e moralmente.
Nosso papel, como
estudiosos do Direito, foi conferir ao Congresso Nacional o caminho jurídico
para fazer o que é necessário. O que será feito, ou não, está fora de nosso
alcance, mas temos a consciência tranquila de que não nos calamos diante de
quadro tão triste. Independentemente do que venha a ocorrer, não desistiremos
do Brasil!
HÉLIO BICUDO, 93,
procurador de Justiça aposentado, foi vice-prefeito de São Paulo (gestão
Marta), e JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 41, advogada, é professora de
direito penal na USP. Com o jurista Miguel Reale Júnior, são autores de pedido
de impeachment da presidente Dilma Rousseff ora em análise na Câmara dos
Deputados
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